19.12.09

Mais uma vez ela chegava de manhã em casa. Aos 16, começou a se comportar diferente. Quando completou 17, passou a apenas avisar q estava saindo, sem mencionar o destino. Agora com 18 tem plena certeza que é dona do seu nariz. Tinha acabado de concluir o ensino médio e cursava Moda em uma universidade pública. Isso era tudo o que ela fazia questão de mostrar aos seus pais. Conseguiu o que eles queriam, ingressou em uma universidade pública. É verdade que a reação deles, quando ficaram sabendo da escolha da filha, não foi das melhores. Moda. Os filhos de seus amigos cursavam Direito, Engenharia, Ciências Biológicas, cursos que “davam futuro”. Tinham até certa vergonha em dizer o curso da filha caçula. Os mais velhos, dois homens já casados, pais de família, eram o orgulho da família: médicos.

Desde que começou a faculdade o dia a dia na casa ficou ainda pior. Ninguém nunca sabia ao certo onde a garota estava, em especial nas sextas feiras. Saía da faculdade direto para o bar. Era a única coisa que podiam dizer, a partir daí confiavam na menina. Em geral, ela aparecia em casa no domingo pela manhã, com algumas peças de roupa que não eram dela e sapatos na mão. A mãe sempre repetia o mesmo discurso para a filha. Pedia para que ficasse mais em casa – ou pelo menos desse mais notícia -, levasse mais a sério os estudos, que tomasse cuidado com as pessoas com as quais andava, os lugares que frequentava, o que consumia e fazia... E sempre concluía lembrando que o pai já não a reconhecia como de costume.

Todas as noites era a mesma coisa. Bastava terminar a última novela que o telefone começava a tocar. Tocava e tocava. Conversas intermináveis ao longo da madrugada. Como suas aulas eram no período noturno, não se preocupava em dormir cedo, sempre gostou de acordar tarde. Novamente a mãe pedia cautela, ela e o marido deveriam sair cedo de casa no dia seguinte, ou melhor, dali algumas horas.

Por um meio ou outro, os pais ficavam sabendo de possíveis namorados da filha. Mas eram tantos que ficavam confusos, não sabiam exatamente o que acontecia. Apesar de tentar disfarçar, o pai demonstrava ciúme pela garota. Docemente, a menina respondia: “Não se preocupe papai, você sempre será o meu preferido!”.

Toda a família cobrava um namorado dela. Já com 18 anos e sem namorado? Alguma coisa devia estar errada. Com um sorriso no rosto ela explicava: “Tantas meninas perdem a vida social quando estão namorando, meninos que querem tê-las com exclusividade, como se elas dependessem deles, estão cada vez mais comuns. Pelo contrário, quero ser livre, viver minha vida do jeito que eu quiser. Divertir por aí!”. Não, essa justificativa nunca convenceu os tios e avós.

Toda a família se espantou ainda mais com a garota quando, sem o menor cuidado, chegou ao aniversário de 80 anos da avó. Um novo corte de cabelo, resgatado da década de 1980. Os lindos cabelos dourados, compridos com cachos nas pontas, com os de um anjo, haviam se perdido. Agora eram alaranjados, realmente alaranjados, escandalosamente alaranjados.

Enfim, por mais que todos estivessem contra ela, pais, irmãos, noras, tios, avós, desconhecidos, a menina continuava com suas obrigações. Nunca apresentou nenhuma nota abaixo de 80%, sempre ajudou no que fosse necessário nas atividades de casa, fazia questão de visitar os avós toda semana. Super empolgada, já estagiava e ganhava seu próprio dinheiro. Tinha a consciência tranquila e para aqueles que a perturbavam devido ao seu modo de levar a vida, fazia questão de citar uma frase célebre que tinha como lema: “Garotas só querem se divertir!”.

Baseado em: Girls Just wanna have fun, de Cyndi Lauper, letra dela. Faixa 2 do disco She’s so unusual, de 1984.

Escrito em: 10 de dezembro de 2009.

Meu erro: Assim como esse, os dois últimos textos foram revisados por Jú Afonso (http://eumundoafora.blogspot.com/ ).

Meu erro.2: Mil desculpas pelo atraso (esse post deveria ter saído na semana passada). Final de semestre é tenso! Tentando seguir a regra, daqui duas semanas (02/01/2010) pretendo postar o próximo.

Oooops!: O vídeo em questão não está autorizado para ser incorporado... eis o link: http://www.youtube.com/watch?v=x0cJnVeiMrw

29.11.09

Tarde de quinta-feira. Prova amanhã, tenho que estudar. Quando finalmente consigo me concentrar o telefone toca. Será que é ela?! Corro para atender, não posso deixá-la esperando. A prova já não era tão importante. Sei que não deveria, mas não posso evitar esses pensamentos. Oi! atendo como se tivesse certeza de quem ligava.

Sim! É a voz dela. Está em prantos. “Ele terminou tudo!”. Tento pedir para que não chore, mas simplesmente não consigo emitir som algum. Sempre soube que ele não era o melhor para ela. “Preciso muito de um amigo. Preciso muito de você...”, o pouco de esperança que me restava encheu meu coração. Claro! Onde você quiser. “No parque, em meia hora?”, ela pergunta já sabendo a resposta. Sempre estarei lá quando me chamar. Em dez minutos estarei lá, respondo sem pensar. O telefone volta ao gancho. Não deveria estar tão feliz, afinal ela está muito desolada.

“Preciso muito de você...”, essas palavras não saem da minha cabeça enquanto me arrumo. Minha mãe me lança um olhar de reprovação. Nunca apoiou meu amor platônico – segundo ela – por uma amiga.

Saio de casa radiante de tanta felicidade. Antes de ir para o local combinado passo em uma das melhores lojas de chocolates da cidade e compro uma caixa do tipo preferido dela. É o que mais a acalma, é o que cura sua tristeza. Por um momento paro e percebo o absurdo da minha alegria. Minha amiga, a mulher que eu amo, está em extrema infelicidade. Tento, mas não consigo evitar.

Chego ao parque. Adoro esse ambiente. Traz boas lembranças. Prefiro esperá-la próximo ao portão de entrada. Olho para os lados ansioso. Será que ela desistiu? Não, finalmente ela surge na esquina. O mundo parece correr mais lentamente, como em uma cena de filme. Quando ela chega até mim se deixa cair em meus braços, um abraço forte. Chora compulsivamente, minha camiseta chega a ficar úmida. Não me importo, é tão bom ter seu corpo junto ao meu, saber que ela precisa de mim.

Caminhamos em direção ao lago. Sentamos debaixo de uma bela e aconchegante árvore. A mesma que, quando crianças, costumávamos subir até que nossas mães nos mandassem descer. Uma época que a menina ainda era apenas uma amiga. Ofereço a caixa de chocolates. Ela me olha agradecida, carinhosamente, diz obrigada e coloca um na boca. Depois de alguns já está mais calma.

Apesar de não ser o que eu gostaria de escutar, dou atenção às histórias do namoro de dois anos recém acabado, mais uma vez. Primeiramente os momentos bons, mas logo ela narra os ruins. Ele era incapaz de respeitá-la ou entendê-la. É difícil de acreditar que alguém tenha coragem de tratá-la mal, deixá-la triste. Ela não significava tanto. “Mas ainda assim, eu gosto tanto dele...”. Palavras que fuzilaram minha esperança.

Você merece alguém melhor, que te ame de verdade, sugeri timidamente. Alguém, que te faça feliz de verdade, não sofrer, chorar... O choro dela volta. Tenta contê-lo, mas não tem sucesso. O máximo que consegue é balbuciar: “Não acredito mais em homens, a não ser em você. E é muito bom ter um amigo [ela repousa a mão no meu joelho como de costume] ao meu lado sempre que preciso.”.

Baseado em: Esqueça, originalmente Forget him, de Mark Anthony, com versão em brasileira escrita por Roberto Côrte Real. Primeiramente gravada por Roberto Carlos, faixa 4 do álbum Eu te darei o céu, de 1966. Posteriormente gravada por Marisa Monte.

Escrito em: 23 de novembro de 2009


14.11.09

Tudo ficou mais aparente, e insustentável, depois que a única filha saiu de casa para cursar direito em uma universidade federal do interior. O típico casal de classe média já estava se aproximando das bodas de prata, apesar de ainda estarem nos quarenta e poucos. Até então ele tinha dado a ela uma vida simples, mas completa. Uma filha linda que a enchia de orgulho. Suas amigas ainda esperavam um futuro como o dela.

Com o passar dos meses, ela foi percebendo que já não era tão feliz. As crianças do hospital, no qual trabalhava como enfermeira, já não traziam a mesma alegria de antes. Gostava de quando dedicava mais horas a elas, entretanto, o marido pediu que encerrasse sua carreira. Não aceitou, mas diminuiu o tempo gasto no cuidado dos pequenos. Agora ela sonha com uma vida diferente. Só ela e a filha. Inconscientemente não imagina o marido nessa nova fase.

Percebe que já não o ama como há vinte e poucos anos. Quem sabe não é hora de viver novas aventuras, novos amores... Mas lhe falta algo. Queria ter a coragem de antes, a que teve quando enfrentou a família por casar-se “cedo demais”, por constituir uma família “antes do tempo”. Queria recuperar o que um dia chamaram de “falta de juízo”. Ele costumava apoiá-la em seus sonhos. Sem a filha em casa fica mais fácil perceber como as coisas não são mais as mesmas.

Quer mudar. Sabe que quer. Junta um resto de coragem e alguns objetos carregados do que ela chama de valor sentimental. Aproveita o sono dele depois do almoço de domingo. Sai.

Passeia pela cidade. Ruas, bares e parques estão repletos de famílias de todas as formas, amigos a tagarelar, casais de todas as idades. Sente falta dos amigos que há muito não vê, da infância feliz da filha, de quando era uma jovem namorada apaixonada caminhando abraçada ao único homem que teve. Apesar das nuvens mancharem o azul do céu, está um dia bonito. Ela senta em um banco do parque e aprecia a paisagem e os que por lá passam.

Olha o relógio do prédio, 15h30, hora de voltar para casa. Já não é mais tão corajosa. A realidade fala mais alto. O discurso elaborado durante o caminho de ida se desfaz no de volta.

16h. Ela abre a porta. Crisântemos foram cuidadosamente deixados em um belo vaso, presente do casamento. O apartamento parece ter uma atmosfera mais leve que a habitual. Ele a abraça e lhe dá um beijo carinhoso. Ela corresponde com um “Eu te amo” que já soou mais vivamente. Não pode encontrar homem melhor.

Baseado em: Better Man da banda Pearl Jam, com letra de Eddie Vedder. Faixa 11 do disco Vitalogy de 1994.

Escrito em: 20 de outubro de 2009



1.11.09

2005. Havia recebido meu primeiro “salário” e queria comprar algo que, sempre que visse, lembrasse dele. O primeiro salário que minha mãe recebeu também teve um significado. Foi só com ele que ela finalmente pode começar a usar brincos. Até os vinte e poucos anos a orelha dela não era furada. Enfim, isso eu não podia fazer, a minha foi maldosamente furada quando eu ainda era um bebê recém-nascido, como o de costume.
Pensei durante um bom tempo o que faria, até porque não era tanto dinheiro assim – R$50,00 por algumas fotos para serem divulgadas como propaganda de escolas católicas. Há muito tempo estava querendo um cd (original, é claro) do Bon Jovi. Já tinha cansado de sempre pegar emprestados os de uma prima mais velha que, a propósito, até tinha ido ao show da banda em 1995. Agora queria o meu.
Depois de muito pensar, de novo, decidi pelo New Jersey, de 1988. Tinha uma das músicas que eu mais gostava “Born to be my baby”, além de que também adorava o álbum como um todo, sem comentar a faixa final, “Love for sale”, divertidíssima. Finalmente, um dia, voltando do colégio, passei no shopping e comprei. Agora meu “salário” tinha um formato concreto. E eu, o MEU cd do Bon Jovi.
Fui para a casa do meu namorado saltitando e cantarolando as músicas. O céu estava especialmente bonito naquela tarde. Ao chegar ao meu destino, sorrindo e com o cd nas mãos, ele não percebeu a minha felicidade extrema e voltou para o jogo novo do brinquedinho preferido dele. Quis acreditar que aquilo tinha sido apenas uma distração momentânea. Sentei no chão próximo ao seu lado e ele, automaticamente, estendeu a mão me oferecendo o outro controle, mas recusei. Agora tinha conseguido atenção.
“Olha o que eu comprei!”. “Bon Jovi?!”. Minha alegria foi ao chão. “Sim, Bon Jovi. Qual o problema?”. Ele não se deu o trabalho de responder. “Você já ouviu esse disco?”, insisti, mesmo sabendo que sua resposta seria negativa. A banda estava novamente no mainstream com Have a Nice Day, álbum, música e clipe (bem interessante por sinal). Apesar de já estar falando sozinha (o jogo já o tinha novamente), continuei argumentando que a banda, naquela época, era muito diferente, que ele deveria escutar, principalmente antes de criar uma opinião.
Estava tão indignada com a atitude preconceituosa dele que nem ao menos me despedi. Dei-lhe um beijo na bochecha e fui embora. Retomei meu caminho. O dia continuava o mesmo, o céu ainda estava um azul impressionante. Minha decepção foi tão grande que a atmosfera ao meu redor ficou mais pesada.
Cheguei em casa, abri o cd – já sem a emoção com a qual o faria normalmente -, coloquei no aparelho de som e apertei play. Deitei na cama ao som de “Lay your hands on me”. Os anos 80 estavam de volta e com eles o meu humor há pouco perdido.

Baseado em: Nunca diga da banda Pato Fu, com letra de Frank Jorge (da banda Graforréia Xilarmônica). Faixa 3 do disco Televisão de Cachorro de 1998.

Escrito em: 28 de setembro de 2009

16.10.09

Foi em uma festa dada por um amigo em comum que eles se conheceram. Ele cursava o último ano de engenharia mecânica e ela o segundo de ciências biológicas. A sintonia entre eles era impressionante. Os mesmos programas, mesmos artistas, mesmas comidas, em tudo o casal combinava. É claro que havia discussões, mas eram raras e tudo sempre acabava melhor do que antes.
Foi na véspera da formatura dela que aconteceu o pedido. Dois anos depois estavam casados. A vida matrimonial era perfeita, os amigos os viam como um casal de cinema. Apartamento próprio com a decoração dos sonhos apesar da situação financeira não ser das melhores. Os pais morriam de orgulho dos dois, eram adorados por toda a família, que começava a cobrar herdeiros.
Apenas depois das bodas de pérola o primeiro filho veio. As feições angelicais e a calma proporcionaram a coragem necessária para o segundo ser desejado. Três anos depois o caçula chegou completando a família. Pai, mãe e dois meninos. A tranqüilidade que as crianças pareciam levar quando bebês desaparecia a cada ano. Quando o mais novo começou a acompanhar o mais velho nas brincadeiras foi o fim do sossego. Ao chegarem em casa os pais tinham que tomar cuidado, olhar onde pisavam, afastar carrinhos e bonecos. Se a casa estava em silêncio poderia significar duas coisas: ou a televisão havia hipnotizado os anjinhos ou, o mais provável, eles estavam pensando como roubariam as chaves do carro sem que a mãe percebesse.
Foi justo nessa época que o pai começou a viajar muito, o que acabou por reforçar os laços dos meninos com a mãe. Defendiam de todas as formas possíveis a mulher que fazia de tudo para vê-los felizes. Na mesma proporção que os períodos de ausência dele se tornavam mais freqüentes e longos, o tempo que ela dedicava aos seus filhos aumentava.
Quando ele finalmente voltava de suas viagens era uma alegria, a família se reunia novamente depois de tanto tempo separados. A mulher abria um sorriso enorme, os filhos gritavam “Pai!” ao ouvirem a chave entrando na fechadura. A mãe agradecia a Deus a chegada do marido, agora quem ajudaria nas lições de matemática era ele, mas ainda era a ela que eles perguntavam se podia fazer isso ou aquilo, se podiam ir brincar na casa do amigo.
O retorno do pai era o acontecimento do dia dos garotos, afinal era o super-heroi particular deles quem chegava. O homem com quem eles queriam parecer quando crescessem. Assim que ele colocava os pés em casa eles pediam para ouvirem as aventuras daquela viagem, os perigos que ele enfrentou, os amigos que fez pelo caminho. No dia seguinte o pai era o assunto mais comentado na escola.
Diante dessa situação ele tomou uma atitude, não suportava mais aquilo. O sentimento de culpa o corroia por dentro, ele não merecia a felicidade daquela família. Resolveu contar tudo a eles, até mesmo aos filhos, por mais que fossem apenas crianças. Finalmente o que parecia inabalável iria ruir.
Foi em um domingo. Logo pela manhã pediu a todos que sentassem à mesa, pois tinha algo muito importante para falar. A mulher ficou apreensiva, os garotos não entendiam o que estava acontecendo, mas mergulharam na atmosfera pesada. Esperou o caçula sentar-se e simplesmente falou: “Eu tenho outra família”. Os olhos dela se encheram de lágrimas, as crianças empalideceram. “Eu sempre ia para a mesma cidade”, contou. “Lá eu a conheci. Temos uma filha de um ano.”. Todos continuaram em silêncio, as lágrimas escorriam. Afinal os garotos não eram tão ingênuos assim. “Todas as vezes que voltava me sentia um monstro. Não mereço o amor de vocês. Elas sempre souberam da minha vida aqui.”. A mãe protegeu os filhos com um abraço, já não conseguia encarar o marido. “Vim me despedir de vocês e pegar minhas coisas. Espero que guardem uma lembrança como o marido e o pai que fui. Apesar de tudo o que fiz eu amo vocês.” O mais velho olhou para a foto da família que ficava na parede de frente para a porta, correu até ela e tirou-a de lá. Tinha sido tirada no dia do seu aniversário há dois anos. Colocou-a virada para baixo no chão e trancou-se no quarto, havia perdido seu modelo de homem. O mais novo, soluçando, não soltava a mãe. Havia perdido seu grande herói. A mulher colocou o caçula no colo, apesar de já não comportá-lo muito bem, e foi para o quarto desse. Havia perdido seu grande amor.
O homem foi para o quarto do casal, pegou uma mala, juntou o que pode e deixou para trás o lar que construiu. Ainda não tinha certeza se tinha feito a escolha certa. Ele acabava de perder toda uma vida.

Baseado em: Look what you’ve done da banda JET, com letra de N. Cester. Faixa 4 do disco Get Born de 2003.

Escrito em: 05 de setembro de 2009