9.8.11

P&B

Meses sem escrever... Guardadas as devidas proporções, fiquei olhando para uma folha em branco sem saber o que fazer, assim como meu vizinho que agora olha para suas tintas, seus papéis e blocos intocados de argila. Logo ele que sempre é visto pintando, desenhando, modelando, criando. Mas, ao contrário de mim que andou correndo de um lado pro outro, curtiu a vida, descobriu muita coisa e simplesmente teve preguiça de sentar para escrever, o motivo da falta de inspiração dele parece mais ser pouca motivação e excesso de pensamento. Há tempos aquela moça de beleza incontestável, que costumava aparecer pela manhã na janela, não é mais vista por aqui.

Lembro bem que um dia acordei, olhei para fora do meu quarto e vi o casal numa felicidade contagiante. Como quis saber o que trazia tanto bom humor numa manhã de segunda-feira! Mas ok, não era assunto meu. Eles sim, felizes da vida se abraçavam, se beijavam, sorriam compulsivamente e olhavam para um papel de rascunho.

No dia seguinte o vizinho estava colando nas paredes do apartamento novos desenhos. Apesar da distância entre os prédios (delimitada por uma pequena casa) e com a ajuda da posição dos andares (o meu ficava um acima do dele), pude ver vários retratos que ele havia feito dela. Muito bons, como sempre. Mas dessa vez ela não posava para ele como se fosse uma modelo profissional, mas aparecia como se fosse “apenas” uma pessoa feliz que dividia o espaço com o artista.

Por mais que só pudesse vê-los por poucos minutos e apenas alguns dias, era comum presenciar cenas agradáveis através da janela deles. Eram um casal que transmitia boas energias, ainda que estivesse fazendo coisas banais e estáticas, como assistir TV. Eram o tipo de casal que você sente que vai durar para a vida toda e nunca vai envelhecer. Parecem tão bem assim! O tempo não deveria passar para esse tipo de pessoa. Qualquer um dos dois, quando via alguém das redondezas na rua, sempre desejava um bom dia. Entre as aposentadas que se encontravam na varanda da casa entre os dois prédios, o casal era o assunto preferido (na falta de alguma fofoca mais urgente, é claro). “Eles formam um casal tão bonito”, “Será que demora muito para o casamento?”, “Imaginem os filhos que vão ter! Vão ser as crianças mais bem educadas do bairro”, “Ele é tão apaixonado, não acham? Faz de um tudo para ela! Ela é o Sol que ilumina a vida dele”.

Ao que parece sim, ele era apenas um planeta girando em torno de sua estrela. Parece que a luz que ela irradiava alimentava as criações dele. Olhando pela janela e vendo os últimos desenhos que ele pendurou, fica a impressão de que a estrela se apagou. Como eu nunca havia visto antes, agora o preto domina suas obras. E ele continua sentado em um banquinho, enquanto tintas e papéis esperam para ser escolhidos.

A rotina do casal no sábado à tarde era bastante previsível. Ela fazia poses, ele dava palpites, ela se ajeitava melhor e ele fazia o esboço do desenho que continuaria no dia seguinte. Quando o dia pensava em acabar, eles saiam, iam até um parque próximo daqui e se divertiam com as crianças que brincavam. A última vez que o vi sentado no mesmo banco do parque ele estava sozinho e por mais que as crianças insistissem, ele não conseguia se entreter com aquilo.

Agora ele apóia os cotovelos nos joelhos e deixa a testa cair nas mãos. Atormentado faz que não com a cabeça até quase se desequilibrar do pequeno banco. O artista então olha para o balde cheio de água amarelada das tentativas frustradas de modelar alguma forma na argila. Ele olha para as pinturas pelas paredes. Observa que algumas antigas ainda estão lá. Foram selecionadas por ele mesmo para ocuparem espaços especiais daquele cômodo. Olhando com mais cuidado, agora elas estão sempre acompanhadas de alguma nova, feita apenas com a tinta preta. De repente ele se levanta derrubando o banco em que estava, pega o balde e espalha toda aquela água turva pelos desenhos da bela moça que decoram as paredes.

As cores quentes e vivas que coloriam os papéis ficam manchadas pelo preto que escorre dos trabalhos mais recentes. Ele saiu do cômodo, não consigo mais vê-lo.

O dia passa, a noite passa, um novo dia chega. Logo que saio de casa para trabalhar vejo as simpáticas senhorinhas conversando na varanda ao lado do prédio onde moro e escuto uma conversa estranha. “Vocês ficaram sabendo o que aconteceu com o casal? Por que a moça sumiu? Quando eu estava na garagem do prédio hoje mais cedo achei esse papel. Aqui fala que ela foi selecionada para fazer alguma coisa fora do país. Não consegui descobrir o quê, nem onde. Está tudo borrado com uma tinta preta”.

Baseado em: Black, da banda Pearl Jam. Composta por Eddie Vedder e Stone Gossard. Faixa 5 do disco Ten, de 1991.