24.10.10

Rock, cerveja e botas.

Agora eles estavam quase saindo de casa. Enquanto ele apreciava a garota terminando de se arrumar, ela procurava por todos os cantos aquele par de saltos lindos que comprou de presente de natal para ela mesma. Ele estava escorado na moldura da porta (um dia aprendi que isso na verdade se chama umbral), com a roupa de sempre: calça jeans bem confortável, camiseta com algum desenho legal estampado e All Star vermelho. Não conseguia entender porque a sua garota demorava tanto para se arrumar, mas ainda assim gostava muito de observar esses momentos.

Eles já estavam juntos há uns cinco anos. Morando sob o mesmo teto há pouco mais de um. Como de costume estavam indo para um dos pubs da cidade. Além de vários amigos freqüentarem o lugar, a programação da noite prometia ótimos covers de clássicos do rock. Eles até tentavam outras opções, mas sempre voltavam para o mesmo lugar, aliás, onde se conheceram.

Eles eram dois universitários no fim do curso. Preocupados demais com a formatura (e todo o resto que vinha com ela) e sem dinheiro pra muita farra. Estavam nesse tal pub cada qual com seu grupo de amigos. Na época ela estava de caso com um carinha amigo do primo. Ou primo do amigo, não faz diferença. Uma certa hora da noite, quando era a vez do nosso protagonista ir buscar cerveja, ele encontrou com ela e sua beleza incomum no balcão. Eles se olharam, ela sorriu educadamente e foi embora. Ele não resistiu e olhou pra trás. Tudo que pode ver foi o longo cabelo castanho e um pouco da comprida bota que se misturava em meio a tantas pernas que havia pelo caminho. Depois de uma série de “auto-xingamentos” ele voltou para seus amigos.

Naquele dia quem tocava era um cover de The Doors. Durante a apresentação ele pode ver o olhar ameaçador da garota do balcão e pensava: “Você ainda vai ser a minha garota”. Porém, quando viu que ela estava acompanhada bateu um desanimo que o levou pra casa mais cedo que de costume.

Duas semanas depois lá estava ele em um outro pub. Dessa vez quem “tocava” era o Led Zeppelin. Qual não foi a surpresa ao ver a garota dos longos cabelos castanhos e botas? Ele reparou se havia alguma companhia suspeita e foi até a sua futura garota sem nem comentar com os amigos. Ela se lembrou dele assim que o viu aproximando. Ao contrário de semanas antes, dessa vez eles conseguiram conversar como queriam.

Voltando ao apartamento do início da história, ela olhou para seu observador e falou: “Estou quase pronta”, mas quando abriu a carteira voltou atrás. “Não... cadê meu dinheiro?!”. Ele sorriu e cantarolou “You don't need that money when you look like that, do ya honey”. “OI?!” ela disse indignada. “Nada honey, tava só lembrando uma música, vamos? É seu aniversário e seus convidados já devem estar te esperando. Esqueceu que eu pago a sua conta?”. O tal olhar ameaçador não descansa, por mais doce que ela pareça ser. Ele estendeu a mão para ela e chamou: “Vamos?”.

Baseado em: Are you gonna be my girl, da banda Jet. Composta por N. Cester e C. Muncey. Faixa 2 do disco Get Born, de 2003

10.10.10

Como nos velhos tempos

Um dia desses, eu estava conversando com a minha avó e ela resolveu me contar uma história dela e do meu avô, quando ainda eram namorados, ou sei lá como isso se chamava naquela época. A história aconteceu em uma tarde de outono, num parque da cidade e foi mais ou menos assim:

Ao contrário do que normalmente acontecia, meu avô chegou de surpresa na casa dos meus bisavós para levar minha avó para passear. Como ele já tinha conquistado a confiança dos sogros, eles saíram tranquilamente. Minha avó reparou numa coisa estranha. Ele levava uma cesta na mão... um piquenique provavelmente, mas porque ele não pediu para ela arrumar a cesta? Largou a curiosidade pra lá e acompanhou seu amado.

Eles estavam namorando havia uns 4 anos e estavam muito felizes. As irmãs da minha avó morriam de inveja em ver um casal tão bonito e que tinha tudo para dar certo. Elas não tinham a mesma sorte. Enfim eles chegaram ao parque mais bonito da cidade. Juntos montaram o que seria o lanche da tarde com todas as delícias que meu avô tinha trazido dentro da cesta. “Com certeza isso foi ideia da minha sogra” pensou a minha avó, na época uma senhorita dona de uma cintura de deixar no chinelo qualquer modelo magrela. O casal se sentou e começou a conversar e coisas afins que namorados faziam naquela época (ela não entrou em detalhes sobre essa parte).

Um momento de silêncio e meu avô começou a imaginar algumas coisas: “Helena, já imaginou nossas vidas daqui alguns anos? Eu começando a perder meus cabelos e usando uma boina para disfarçar. Você com um coque prendendo os cabelos. Preferia que você continuasse com eles soltos, mas pelo que vejo por aí, depois de um tempo as mulheres costumam mantê-los presos. Nossos filhos já vão estar casados. Vou continuar te dando presente de dia dos namorados, sabia?”

Essas palavras foram totalmente inesperadas. Ele não costumava falar sobre o futuro com ela. Minha avó disse que ficou muito feliz. Encostou-se no ombro dele e continuou escutando. “Você vai me dar feliz aniversário e uma garrafa de vinho. Depois de certa idade as pessoas elegantes ganham vinho de aniversário. Nós vamos ser um casal elegante! Mas se um dia eu chegar tarde em casa, depois de um dia de trabalho... você ainda vai me receber na porta, não vai?”. Ela respondeu com um longo suspiro e um “uhum”.

“Quando estivermos lá pelos nossos... 64, 65 anos, você ainda vai me querer ao seu lado? Ainda vai fazer o almoço de domingo?” Confesso que a minha reação nessa parte não foi muito agradável, mas era a época, fazer o quê. Já ela respondia a tudo afirmativamente e muito feliz, as lágrimas estavam se preparando para entrar em cena (na história e na narração). “Ainda vou ser muito útil pra você. Posso trocar a lâmpada da sala e consertar um fusível queimado. E quando você se cansar posso te encher de amor e carinho. Acho que você vai me dar um suéter que você mesma fez no inverno. No domingo de manhã, enquanto esperamos nossos filhos chegarem para o almoço, vamos passear pelo jardim, brincar com os cachorros. Vamos ter dois. E um gato também. Sentados no meio das plantas vamos cuidar delas. Tirar todas as ervas daninhas e plantar novas espécies. Aposto que você vai querer as mais variadas orquídeas nos fundos e as rosas mais coloridas na parte da frente da casa.” Ela não poderia ter imaginado futuro melhor! A essa altura os olhos da minha avó já estavam marejados à minha frente.

“Sabe o que vamos fazer nas férias de verão? Pegar nossos netos e levá-los para uma casa de praia num lugar mais distante, no sul do país. Vamos ter três netos: a Vera, o Davi e o Carlos. Ainda não sei quem é o mais velho, mas o Carlos é o mais novo, com certeza. A casa de praia não deve ser muito cara... mas se for você usa sua incrível habilidade para pechinchar.”

“Eu sei que você vai viajar de vez em quando. Ver sua família e tudo mais. Me promete que vai me mandar um cartão postal ou um telegrama? Quero saber como você está, se suas irmãs continuam rabugentas. Pode ser sincera comigo, não vou contar pra elas o seu ponto de vista.”

Depois de toda uma tarde fazendo esses planos para mais de 50 anos depois, meu avô finalmente chegou no ponto que queria: “Mas Helena, antes de tudo isso acontecer, você precisa me dizer apenas uma palavra”. A essa altura o rosto da minha avó já estava sendo lavado pelas lágrimas. “Você quer se casar comigo?”

Baseado em: When I’m sixty-four, da banda The Beatles. Composta por Paul McCartney e John Lennon. Faixa 9 (ou 2 do lado B) do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, de 1967.

Escrito em: 10 de outubro de 2010.