19.7.10

Ensaio de uma reviravolta

Ele chegou no pequeno apartamento para o qual se mudou há pouco mais de dois anos. Estranho, mas nada daquilo que ocupa o espaço mínimo o agradava. Parecia que os móveis não o pertenciam, que as cores não foram escolhidas por ele, que aquele lugar, enfim, não era dele.

Estava cansado depois de mais uma sexta-feira previsível. Saiu do trabalho depois de horas exaustivas, ligou para a namorada e, como há cinco anos, fizeram o mesmo programa. Comeram o lanche de sempre, no lugar de sempre, foram ao cinema de sempre, ver um filme com o enredo de sempre. Em geral eles também vão juntos para o apartamento dele e transam como sempre. Dessa vez ele pediu para ficar sozinho depois que entraram no carro.

Ele abriu a geladeira, olhou para a última cerveja que estava na porta, fechou novamente e pegou um copo mais baixo no escorredor. Foi até o armário embaixo da televisão, pegou a garrafa de Jack Daniel’s e jogou-se numa poltrona. Serviu-se de bebida até a metade do copo e tomou de uma vez. Olhou para frente com o olhar perdido, em sua mente um zumbido incomodava. Derramou mais destilado no copo, mas não bebeu como antes. Seus olhos continuavam vidrados no nada. Começou a pensar no rumo que sua vida estava tomando. Bebeu um gole grande do whisky e imaginou seu futuro. Não que isso lhe desse muito trabalho. Ele e sua atual namorada se encontrariam após o trabalho, iriam ao velho restaurante, depois veriam mais um filme idiota e voltariam pra casa. Enquanto ela toma banho, ele checa uma última vez o email com a televisão ligada, transmitindo um jornal qualquer. Ela sai do banho, coloca o pijama e eles trocam de lugar. Ele se banha enquanto ela olha os emails. Vão para a cama, cada um vira para um lado, dizem “boa noite” quase que automaticamente e adormecem.

Ele reabasteceu o copo. Há muito já percebia que não eram mais um casal como costumavam ser. Ainda se amavam muito, mas eram frios um com o outro, não era mais tão divertido assim. Nem pra ele, nem pra ela, sabia disso. Sentia que alguma coisa estava para mudar, sua vida era repleta de transformações inusitadas, ainda que ele sempre conseguisse pressentir quando um furacão estava para atingi-lo novamente. Ele se levantou de supetão, jogou o copo ainda cheio na parede que passou tanto tempo contemplando e começou a urrar coisas sem sentido.

Gritou palavras para alguém que não estava lá. Perguntava se esse alguém estava se divertindo com a situação dele. Correu até a cozinha e derrubou uma gaveta com violência. Procurou no chão algo que mais parecia uma faca de açougue e apontava para o nada de forma ameaçadora. Com uma risada típica do seu vilão favorito dos quadrinhos falava para seu alvo invisível não temer porque aquilo era algo passageiro. Lágrimas escorriam pelo rosto e encontravam o enorme sorriso em sua boca. “Não precisa fazer essa cara! Daqui a pouco tudo isso vai acabar!” e dava uma gargalhada ainda mais alta. Em mais um ataque de fúria ele enterrou a ponta da faca na mesa de madeira ao lado do fogão e andou desgovernadamente até o quarto em que dormia. Fora de si o homem berrou sem parar: “Você quer assistir à televisão?” e jogou o aparelho contra o armário. “Ou será que prefere ir dormir”, virou o colchão e tudo o mais que havia em cima dele.

Da mesma forma como tudo começou, ele parou respirando de forma ofegante. Sentou-se no chão, apoiou as costas no armário e reparou no estado que estava o cômodo. As lágrimas continuavam molhando seu rosto. Olhou pela janela e viu uma noite sem nuvens, mas também, curiosamente, sem estrelas. Sempre gostou de deitar no chão e olhar para o céu. Passava horas fazendo isso quando podia. Pensar na possibilidade de voar... Sumir da vida que tinha nos últimos meses... Sentia-se preso num caixão sem forças o suficiente para se libertar dele, sem nem ao menos poder tentar.

Se levantou, foi até o banheiro e jogou água fria no rosto tentando se recompor. Esperava que os vizinhos não tivessem se assustado, ou chamado a polícia. Não queria ter feito aquilo com o apartamento. Até porque quem teria que arrumar tudo era ele mesmo. Pelo menos estava mais leve. Sua cabeça já não estava parecendo uma bomba prestes a explodir. Conseguia pensar em alguma coisa pra fazer, ou em alguém com quem conversar. Podia olhar pra frente e ver que aquilo era só uma fase e que, no final, tudo daria certo. Pelo menos era com isso que ele sonhava todos os dias. 


Baseado em: One of my turns, da banda Pink Floyd. Composta por Waters. Faixa 10 do disco The Wall, de1979.

Pedido de Rafael Mox 

 Escrito em: 15 de julho de 2010. 

 Revisado por: Jú Afonso (http://eumundoafora.blogspot.com/)

 


5.7.10

Delicadamente vingativa

Sempre achei que você já soubesse disso. Se era tão experiente como dizia - e falavam por aí – como pôde cometer um erro tão banal? A não ser que fosse por diversão, esporte, gosto pelo perigo... Mas acho que você não tem noção de que, comigo, o perigo era, não apenas maior, mas também mais real. Pelo que te conheço, posso ouvi-lo dizer “Eu rio na cara do perigo, Há-há-há...”. Patético você. Em toda a sua esperteza e coragem deveria lembrar que não sou exatamente como as mulheres “normais”. Não bato muito bem da cabeça... Não me lembro de ter te contado isso, mas sabia que uma vez um psicólogo me recomendou que tivesse uma consulta com um amigo dele, psiquiatra? Enfim, não vem ao caso, quem sabe um dia você não tem a chance de ouvir essa história mais detalhadamente.

Da primeira vez que você terminou comigo confesso que fiquei muito triste. Na verdade mais que isso. Passei no supermercado, comprei 5 potes de sorvete, aluguei pelo menos uns 10 filmes e fiquei dias sem sair de casa, não queria falar com ninguém. Nem as cortinas eu abria, muito menos as janelas. Quando eu acordava depois de dormir o dia todo sozinha, mal conseguia abrir os olhos de tão inchados que estavam. Acho que tinha motivo pra isso... Te peguei comendo a vizinha...

Depois de muita insistência – e quando eu não conseguia mais evitar as noitadas enchendo a cara -, meus amigos me tiraram de casa. A ideia inicial não foi minha, mas eles me convenceram a despertar a criatura vingativa que hibernava dentro de mim.

Hoje a situação mudou. Ainda me surpreendo com seus telefonemas a todo o tempo. Nem acredito quando ouço sua voz tentando se recuperar de muito choro, se lamentando... Não se preocupe, adoro esses telefonemas, não tem ideia do quanto me divertem. Impressão minha ou se arrependeu de alguma coisa? Continue assim, me deixa muito feliz. É verdade que por um instante tenho pena de você, mas logo volto a rir loucamente e sigo meu caminho.

Mal pude acreditar nas últimas ligações. Muito menos quando eu te encontrei dormindo na porta da minha casa. Agora você me pede pra voltar, diz que me ama, que não consegue viver sem mim e toda essa asneira. Sim, sem a menor vergonha ou piedade digo que você e nada são a mesma coisa pra mim. Você já não faz a MENOR diferença na minha vida. Quero mais que você vá para o inferno e leve consigo toda a sua futilidade e preponderância. Está solitário? Que coisa hein?! Foda-se! Pensa em suicídio? Faz um bem enorme pro mundo. Só te peço pra me avisar quando for se matar, não posso perder essa cena.

Todo esse seu discurso me faz rir mais e mais. Faz a minha vida muito mais feliz, sabe? Caminho sorridente pela rua. Reparou como o céu está mais azul nesses dias de outono? Um aviso: não se anime, isso é apenas o início. Não sabe como posso ser ainda mais... indelicada, digamos assim.


Baseado em: Smile, da cantora Lily Allen. Composta por Allen, Iyiola Babalola, Darren Lewis, Jackie Mittoo. Faixa 1 do disco Alright, Still, de 2006.

 Escrito em: 01 de julho de 2010.

 Revisado por: Jú Afonso (http://eumundoafora.blogspot.com/)