16.10.09

Foi em uma festa dada por um amigo em comum que eles se conheceram. Ele cursava o último ano de engenharia mecânica e ela o segundo de ciências biológicas. A sintonia entre eles era impressionante. Os mesmos programas, mesmos artistas, mesmas comidas, em tudo o casal combinava. É claro que havia discussões, mas eram raras e tudo sempre acabava melhor do que antes.
Foi na véspera da formatura dela que aconteceu o pedido. Dois anos depois estavam casados. A vida matrimonial era perfeita, os amigos os viam como um casal de cinema. Apartamento próprio com a decoração dos sonhos apesar da situação financeira não ser das melhores. Os pais morriam de orgulho dos dois, eram adorados por toda a família, que começava a cobrar herdeiros.
Apenas depois das bodas de pérola o primeiro filho veio. As feições angelicais e a calma proporcionaram a coragem necessária para o segundo ser desejado. Três anos depois o caçula chegou completando a família. Pai, mãe e dois meninos. A tranqüilidade que as crianças pareciam levar quando bebês desaparecia a cada ano. Quando o mais novo começou a acompanhar o mais velho nas brincadeiras foi o fim do sossego. Ao chegarem em casa os pais tinham que tomar cuidado, olhar onde pisavam, afastar carrinhos e bonecos. Se a casa estava em silêncio poderia significar duas coisas: ou a televisão havia hipnotizado os anjinhos ou, o mais provável, eles estavam pensando como roubariam as chaves do carro sem que a mãe percebesse.
Foi justo nessa época que o pai começou a viajar muito, o que acabou por reforçar os laços dos meninos com a mãe. Defendiam de todas as formas possíveis a mulher que fazia de tudo para vê-los felizes. Na mesma proporção que os períodos de ausência dele se tornavam mais freqüentes e longos, o tempo que ela dedicava aos seus filhos aumentava.
Quando ele finalmente voltava de suas viagens era uma alegria, a família se reunia novamente depois de tanto tempo separados. A mulher abria um sorriso enorme, os filhos gritavam “Pai!” ao ouvirem a chave entrando na fechadura. A mãe agradecia a Deus a chegada do marido, agora quem ajudaria nas lições de matemática era ele, mas ainda era a ela que eles perguntavam se podia fazer isso ou aquilo, se podiam ir brincar na casa do amigo.
O retorno do pai era o acontecimento do dia dos garotos, afinal era o super-heroi particular deles quem chegava. O homem com quem eles queriam parecer quando crescessem. Assim que ele colocava os pés em casa eles pediam para ouvirem as aventuras daquela viagem, os perigos que ele enfrentou, os amigos que fez pelo caminho. No dia seguinte o pai era o assunto mais comentado na escola.
Diante dessa situação ele tomou uma atitude, não suportava mais aquilo. O sentimento de culpa o corroia por dentro, ele não merecia a felicidade daquela família. Resolveu contar tudo a eles, até mesmo aos filhos, por mais que fossem apenas crianças. Finalmente o que parecia inabalável iria ruir.
Foi em um domingo. Logo pela manhã pediu a todos que sentassem à mesa, pois tinha algo muito importante para falar. A mulher ficou apreensiva, os garotos não entendiam o que estava acontecendo, mas mergulharam na atmosfera pesada. Esperou o caçula sentar-se e simplesmente falou: “Eu tenho outra família”. Os olhos dela se encheram de lágrimas, as crianças empalideceram. “Eu sempre ia para a mesma cidade”, contou. “Lá eu a conheci. Temos uma filha de um ano.”. Todos continuaram em silêncio, as lágrimas escorriam. Afinal os garotos não eram tão ingênuos assim. “Todas as vezes que voltava me sentia um monstro. Não mereço o amor de vocês. Elas sempre souberam da minha vida aqui.”. A mãe protegeu os filhos com um abraço, já não conseguia encarar o marido. “Vim me despedir de vocês e pegar minhas coisas. Espero que guardem uma lembrança como o marido e o pai que fui. Apesar de tudo o que fiz eu amo vocês.” O mais velho olhou para a foto da família que ficava na parede de frente para a porta, correu até ela e tirou-a de lá. Tinha sido tirada no dia do seu aniversário há dois anos. Colocou-a virada para baixo no chão e trancou-se no quarto, havia perdido seu modelo de homem. O mais novo, soluçando, não soltava a mãe. Havia perdido seu grande herói. A mulher colocou o caçula no colo, apesar de já não comportá-lo muito bem, e foi para o quarto desse. Havia perdido seu grande amor.
O homem foi para o quarto do casal, pegou uma mala, juntou o que pode e deixou para trás o lar que construiu. Ainda não tinha certeza se tinha feito a escolha certa. Ele acabava de perder toda uma vida.

Baseado em: Look what you’ve done da banda JET, com letra de N. Cester. Faixa 4 do disco Get Born de 2003.

Escrito em: 05 de setembro de 2009