A garota não agüentava mais. Fugiu do pequeno apartamento na periferia da cidade para um outro que alguns amigos dividiam num bairro próximo do centro. Deixou para trás a mãe, o irmão mais novo e o pai. Se é que o homem não os tinha deixado para trás antes. O carinho da mãe e do irmão já não fazia daquele um ambiente familiar. Correndo pelas ruas, logo chegou ao prédio já conhecido. Os amigos a receberam preocupados. “Você precisa dormir. Amanhã conversamos no caminho para a escola.”
Pesadelos tomaram conta da noite. Cenas confusas, violência, o rosto de alguém conhecido. Pelo caminho movimentado para onde estudavam, ela desabafou. Não conseguia mais viver naquela casa. A mãe, imatura e muito desorganizada, não conseguia dar continuidade à própria vida. O pai, quando aparecia, estava sempre alterado, cada vez por alguma coisa diferente. Era sempre muito violento. E no meio disso o irmão mais novo, tentando crescer com a ajuda da menina.
Ao voltarem da escola, assistiram um filme por acaso. Nele, a polícia investigava o suicídio de uma adolescente de classe média alta. Não chegaram a ver o final. Estavam incrédulos. Não entendiam como alguém que tinha tudo o que queria podia encontrar razões para se matar. Os pesadelos continuaram por toda a semana.
Algum tempo depois, a garota se descobriu grávida. Era só o que faltava. Assim como acontecia agora, sua mãe teve os filhos muito nova. Isso trouxe lembranças da sua família e percebeu que, apesar de tudo, não guardava rancor deles. De nenhum deles. Até onde sabia, todas elas tinha seus problemas, a sua não era diferente. Passou a se apegar a cada lembrança boa que tinha deles. Era a única família que tinha.
Às vezes, durante as aulas ou antes de dormir, passava longas horas refletindo sobre questões sem respostas – ou quase. Gostava de criar teorias sobre a sociedade e a natureza. Ainda guardava aquela vontade de mudar o mundo. A mãe lhe voltava à cabeça. Estava preocupada com ela e com o irmão. Sentia necessidade de ajudá-los a seguir em frente.
Ela nunca se importou com a vida simples e difícil que levava. Nem com onde morava, contanto que estivesse com as pessoas certas. Não que não desejasse (e muito) que as coisas melhorassem. A saudade da família apertava cada vez mais. Passou a visitá-los com certa freqüência. A mãe sempre lhe pedia para que voltasse para casa, para poder cuidar melhor do bebê que estava chegando. A menina se recusava. No fim do ano se formava e já estava juntando dinheiro com pequenos trabalhos. Assim que pudesse iria deixar o filho em uma creche e arrumaria um trabalho fixo. Já tinha algumas ideias e quem ajudasse. Por outro lado, garantiu à mãe que toda ajuda seria bem-vinda.
Durante uma longa fase de sua vida ela acreditou que seus pais não a entendiam. Mas um belo dia, resolveu observá-los por outro ângulo. Parou de culpá-los. Entendeu que eles também sofriam calados pelas dificuldades. Agora que seria mãe, poderia compreendê-los melhor.
Certa manhã, acordou com uma ideia na cabeça: seu filho teria nome bíblico. Não que fosse religiosa, mas pela leveza e esperança que traziam a ela. Se fosse uma menina, seria Ana ou Isabel, se nascesse menino, Matheus ou João.
Baseado em: Pais e filhos, da banda Legião Urbana, letra de. Faixa 2 do disco As Quatro Estações, de 1989.
Escrito em: 03 de março de 2010.
Revisado por: Jú Afonso (http://eumundoafora.blogspot.com/)
Nota da autora: TFM = Tradicional Família Mineira
Ai ai... eu e minha vida atribulada ne? Nem deu pra ver de novo. Mas achei que ficou ótimo. O legal é que não tinha pensando em Pais e Filhos quando li, mas agora, passando a música na cabeça de novo, o que você escreveu faz todo sentido!
ResponderExcluirBeijos!!
Sarinha é como um vinho: Fica melhor com o tempo.
ResponderExcluirQuando comecei a ler pensei que era Natasha do Capital Inicial auhauhauahuah
ResponderExcluirdepois vi que não era rapidinho! Muito tocante, Sarinha. Tenho a impressão de que essa história não deve ser tão irreal assim...
Essa música tinha que virar texto da sarah mais cedo ou mais tarde. Muito bom, honorabilíssima imranzinha.
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